Dança de todos os escuros

Descansando de SP
Por Luma Pereira

Dançando no Escuro (2000) é um drama musical dirigido pelo cineasta dinamarquês Lars Von Trier.

O enredo se passa nos Estados Unidos, em 1964, e a protagonista é Selma Jezková, interpretada pela cantora islandesa Björk. Imigrante tcheca, ela se muda para o país com o filho, Gene (Vladica Kostic), com quem mora num trailer localizado na propriedade do policial Bill (David Morse) e da esposa Linda (Clara Seymour). Selma sofre de uma doença que a levará a cegueira e, por isso, sente os acontecimentos da vida de maneira diferente.

Através principalmente do tato e da audição, ela consegue se comunicar. Também se expressa por meio das músicas que canta – pela voz – e da dança. O intuito da protagonista é juntar dinheiro para a operação de Gene, que tem o mesmo problema de visão e pode ficar cego, se não for tratado. Para tal, ela trabalha com a amiga Kathy (Catherine Deneuve) e o amigo Jeff (Peter Stormare) numa metalúrgica das proximidades, e guarda cada centavo que recebe para a cirurgia do filho.

Selma adora os musicais hollywoodianos, aos quais assiste com Kathy nas horas vagas. A amiga representa com os dedos, na palma das mãos da protagonista, os passos das cenas das películas. Pelo tato, Selma é capaz de contemplar os movimentos de dança dos filmes. Além disso, ela ensaia a peça The Sound of Music numa companhia de teatro. Mas a protagonista vai além, transportando para a própria vida o gosto pelos musicais.

Em várias cenas do filme, Selma entra num estado de fantasia, e imagina as situações como se fossem dança e música. Ela se ausenta da realidade e, no sonho, consegue se libertar do peso de certas ocasiões. Vê na leveza dos movimentos e no timbre da voz o escape para as dificuldades que enfrenta. Em uma das cenas, Selma está trabalhando na fábrica, e, de repente, para e ouve os sons das máquinas. Escuta ritmo naquilo, sendo que, na imaginação da protagonista, os personagens dançam e cantam ao som da canção Cvalda – música que ela percebeu nas engrenagens dos equipamentos e nos sons do ambiente. A protagonista encontra a fuga na música e na dança.

O sentido da existência, para ela, está na ação e no movimento. A vida acontece não em falas vazias nem em diálogos repetitivos, mas nas letras de ritmo, e em passos de coreografia definida. O par de Selma é a fantasia que ela inventa para não sucumbir ao absurdo que vive – quem tira a protagonista para dançar é ela mesma, inserida no próprio devaneio. E o palco pode ser qualquer um que não tenha chão. A libertação de Selma está no escuro, o qual para ela é apenas uma maneira diferente de observar o mundo – a luz está apenas vestida de cor preta.

No decorrer de Dançando no Escuro, Selma acaba sendo demitida da fábrica, e, posteriormente, é roubada por Bill, seu vizinho. Ele utiliza para pagar dívidas de jogo o dinheiro que ela estava juntando para a operação de Gene. Quando a protagonista vai prestar contas do furto, Bill acaba a ameaçando com uma arma. Porém, a protagonista não intencionalmente o fere com o revólver, e então é presa e vai a julgamento. Após a sentença, na prisão, ela dança em meio às grades e aos outros presos, retirando-se momentaneamente daquela situação terrível. Caminha a passos breves e dançantes para o destino ao qual foi condenada.

Lars Von Trier realiza as filmagens segundo o manifesto do Dogma 95, movimento cinematográfico que preza pela produção de películas mais realistas e menos comerciais. As cenas de Dançando no Escuro, por exemplo, são filmadas pelo próprio diretor dinamarquês numa câmera digital, para utilizar minimamente a tecnologia disponível. No Festival de Cannes de 2000, a película recebeu o Palma de Ouro, e Björk ganhou o prêmio de melhor atriz. No filme, o sonho se insinua para a realidade. O palpável e visível não mais se mostra à beira dos olhos, mas perto dos ouvidos, dos passos, da voz. Selma dança em todos os nossos escuros.

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